Papa Francisco: um legado de esperança, paz e justiça em tempos de crise
- Raul Silva
- 21 de abr.
- 9 min de leitura
Laudato Si', Fratelli Tutti e outros documentos fundamentais marcaram um pontificado dedicado ao diálogo, à justiça social e ao cuidado da criação. Na mensagem Urbi et Orbi da Páscoa de 2025, o Papa Francisco reforçou o acervo espiritual e ético que deixa à humanidade em meio a guerras, crise climática e instabilidade política, consolidando um legado de esperança em tempos desafiadores.

Encíclicas que enfrentam desafios globais
O pontificado de Francisco foi moldado por encíclicas e cartas apostólicas que dialogam diretamente com os dilemas contemporâneos. Em maio de 2015, ele publicou Laudato Si', um inédito apelo à ação global diante da mudança climática e da degradação ambiental pt.aleteia.org. Nesta encíclica sobre o cuidado da “casa comum”, o Papa enfatizou a interdependência entre humanidade e natureza, alertando que “a humanidade possui ainda a capacidade de colaborar na construção da nossa casa comum” vatican.va – uma responsabilidade compartilhada especialmente porque os pobres são os mais afetados pela crise ecológica. Anos depois, em outubro de 2023, Francisco voltou ao tema ao lançar a exortação Laudate Deum (considerada por ele uma “segunda parte” da Laudato Si’), na qual advertiu que o mundo está “a desmoronar-se”, aproximando-se de um “ponto de rutura” diante da emergência climática visao.pt. Com essas mensagens, o Papa argentino consolidou-se como uma voz moral de alcance global em defesa do meio ambiente e da sustentabilidade para as futuras gerações.
Fraternidade e paz em meio aos conflitos
A ideia de fraternidade universal esteve no centro do magistério de Francisco, especialmente na encíclica Fratelli Tutti (2020). Publicada durante a pandemia, ela traz a contundente frase: “Ninguém se salva sozinho, só é possível salvar-nos juntos” visao.pt, ressaltando que a saída para as crises da humanidade é a solidariedade. O Papa denunciou as divisões do mundo atual como parte de uma “terceira guerra mundial aos pedaços” – expressão com que criticou a sucessão de conflitos e extremismos que espalham sofrimento em várias regiões visao.pt. Não por acaso, seu pontificado foi marcado por pedidos incisivos de cessar-fogo em guerras e por gestos de apoio a refugiados e comunidades atingidas pela violência dm.com.br. Em diversas ocasiões ele se ofereceu como mediador e elevou orações pela paz, mostrando convicção de que o diálogo pode prevalecer sobre a lógica das armas.
Mesmo em sua última bênção Urbi et Orbi na Páscoa de 2025, já com a saúde fragilizada, Francisco voltou a clamar pela paz no Oriente Médio, na Ucrânia e na África, pedindo trégua nos combates e ajuda humanitária aos povos sofridos vatican.va. Do balcão da Basílica de São Pedro, ele exortou os líderes mundiais a não cederem à “lógica do medo” diante das inseguranças globais, mas a usarem os recursos em favor dos necessitados – “Estas são as ‘armas’ da paz: aquelas que constroem o futuro, em vez de espalhar morte!” vatican.va. Essa defesa do desarmamento e da diplomacia, em lugar da corrida armamentista, foi uma constante em seu papado. Ao longo de 12 anos, Francisco manteve acesa a chama da esperança de que a paz é possível, ecoando o apelo evangélico ao perdão e à reconciliação mesmo nos cenários mais sombrios de guerra.
Diálogo inter-religioso e pontes de encontro
Outro pilar do legado de Francisco foi a promoção sem precedentes do diálogo inter-religioso. Seu esforço de “construir pontes” entre credos ajudou a suavizar tensões sectárias e promover a paz em uma era marcada por conflitos religiosos dm.com.br. Em fevereiro de 2019, em Abu Dhabi, ele deu um passo histórico ao assinar junto ao Grão-Imã de Al-Azhar o Documento sobre a Fraternidade Humana em prol da Paz Mundial e da Convivência Comum, que pregou o respeito mútuo entre cristãos e muçulmanos e rejeitou todo extremismo religioso visao.pt. A data dessa assinatura (4 de fevereiro) foi posteriormente instituída pela ONU como o Dia Internacional da Fraternidade Humana, sublinhando o impacto global da iniciativa.
Francisco também se tornou o primeiro pontífice a visitar alguns países de maioria islâmica em contextos delicados. Em 2021, viajou ao Iraque, levando uma mensagem de reconciliação a uma nação ferida pelas guerras, e reuniu-se com o aiatolá Ali al-Sistani, líder xiita, num encontro marcante de respeito mútuo. No ano seguinte, em setembro de 2022, esteve no Bahrein e reforçou apelos à coexistência pacífica. Já em 2024, durante visita à Indonésia, o Papa entrou na grande Mesquita Istiqlal de Jacarta – a maior do Sudeste Asiático – e atravessou o “Túnel da Amizade” que a liga simbolicamente à Catedral católica vizinha. Na ocasião, enfatizou que “anunciar o Evangelho não significa impor a nossa fé ou colocá-la em oposição à dos outros, mas partilhar a alegria do encontro com Cristo, sempre com muito respeito e carinho fraterno por todos” visao.pt. Esse testemunho de respeito ao outro, sem renunciar à própria identidade, exemplificou a proposta de Francisco de um diálogo baseado na dignidade humana, na busca de Deus e na defesa dos mais frágeis como terreno comum entre as religiões visao.pt.
Com essa abordagem humanista e aberta ao outro, o Papa argentino tornou-se uma voz respeitada não apenas entre os católicos, mas também entre judeus, muçulmanos e líderes de diversas crenças. Ele mostrou na prática que a espiritualidade pode ser caminho de inclusão e unidade, e não de divisão dm.com.br. Encontros inter-religiosos – como as orações pela paz em Assis (na esteira de São João Paulo II) e iniciativas como o Dia de Oração pela Humanidade durante a pandemia – reforçaram a convicção de Francisco de que as religiões, juntas, devem ser parte da solução para os conflitos, nunca combustível para o ódio.
Justiça social e defesa dos vulneráveis
Desde o início de seu papado, Francisco deixou claro que desejava uma “Igreja pobre para os pobres”. Seu compromisso com a justiça social traduziu-se em palavras firmes e ações concretas em favor dos marginalizados. Logo em sua primeira viagem como Papa, em julho de 2013, ele surpreendeu ao deslocar-se até a pequena ilha de Lampedusa, no sul da Itália, para se encontrar com migrantes e refugiados que sobreviveram à perigosa travessia do Mediterrâneo visao.pt. Ali denunciou a “globalização da indiferença” que ceifa tantas vidas de deslocados, inaugurando o tom de um pontificado voltado a acolher quem sofre. Ao longo dos anos, Francisco visitou campos de refugiados, abraçou imigrantes em viagens internacionais e levou alguns para abrigo no Vaticano, sempre insistindo na centralidade da misericórdia e da acolhida ao próximo.
Em novembro de 2013, ele publicou a exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), que acabou servindo como um “programa” do seu papado. Nesse documento, o Papa faz uma crítica contundente à injustiça econômica global, condenando o “fetichismo do dinheiro” e a “ditadura de uma economia sem rosto”. “Tal como o mandamento ‘Não matarás’ impõe um limite claro para defender o valor da vida humana, hoje também temos de dizer ‘não’ a uma economia de exclusão e desigualdade. Esta economia mata” visao.pt, escreveu Francisco, ligando diretamente o Evangelho à ética socioeconômica. Essa expressão forte – “economia que mata” – teve grande repercussão e sintetizou sua denúncia de um sistema que descarta os pobres e vulneráveis em nome do lucro.
Coerente com esse pensamento, o Papa não hesitou em erguer a voz contra políticas e discursos que ferem a dignidade humana. Recentemente, ele criticou medidas de criminalização em massa de imigrantes, afirmando que “a consciência retamente formada não pode deixar de manifestar desacordo com qualquer medida que identifique (...) o estatuto ilegal de alguns migrantes com a criminalidade” visao.pt. Em carta endereçada aos bispos dos EUA, Francisco apelou pelo “rigoroso respeito pelos direitos de todos”, argumentando que políticas migratórias não podem privilegiar uns em detrimento de outros visao.pt. Essa defesa ferrenha dos migrantes e refugiados – tão presentes na crise humanitária global – alinhou-se à mensagem evangélica de acolher o estrangeiro e foi respaldada por gestos como levar refugiados sírios para a Itália em seu avião papal após uma visita à Grécia em 2016.
De maneira geral, a opção pelos pobres permeou as homilias e escolhas de Francisco. Ele levou conforto a doentes, dependentes químicos e pessoas em situação de rua (instalando banhos e serviços para os sem-teto nos arredores do Vaticano). Também convocou a Igreja a sair de si mesma e “ir às periferias” humanas e existenciais. Para Francisco, não basta proclamar a fé sem impacto real na vida das pessoas: a religião deve caminhar de mãos dadas com a solidariedade. Como resumiu o próprio Papa em uma Vigília da Juventude, “só é lícito olhar uma pessoa de cima para baixo para a ajudar a levantar-se” visao.pt. Essa visão de compaixão ativa e respeito à dignidade de cada pessoa tornou-se uma marca registrada de seu pontificado.
Gestos de humildade e reformas que marcaram uma Era
A liderança de Francisco também se destacou pela humildade pessoal e por importantes reformas institucionais na Igreja. Logo nas primeiras aparições após sua eleição em 2013, ele dispensou muitas formalidades – pediu que o povo o abençoasse, optou por não usar alguns símbolos de poder e escolheu morar na modesta Casa Santa Marta em vez do Palácio Apostólico. Em todas as Quintas-feiras Santas do seu papado, foi comum vê-lo inclinando-se para lavar os pés de presos (inclusive mulheres e não-católicos) em sinal de serviço. Imagens do Papa abraçando pessoas doentes, beijando crianças e confortando idosos rodaram o mundo, reforçando sua imagem de pastor próximo do rebanho. Essas atitudes simples, somadas à famosa pergunta “Quem sou eu para julgar?” – dita em relação a gays logo em 2013 – sinalizaram uma mudança de tom na Igreja, com ênfase na misericórdia e na inclusão em vez da condenação.
Paralelamente, Francisco implementou mudanças estruturais para tornar a Igreja mais colegiada, transparente e presente no mundo atual. Ele convocou Sínodos dos Bispos sobre temas como família, juventude e, mais recentemente, a própria sinodalidade (em 2023-2024), incentivando a escuta de leigos, mulheres e grupos antes à margem dos processos decisórios. Não por coincidência, a maioria dos cardeais eleitores atualmente foi escolhida por ele, muitos oriundos das “periferias” geográficas que antes raramente tinham voz no Colégio Cardinalício. No consistório de dezembro de 2024, por exemplo, Francisco rompeu a tradição de privilegiar grandes dioceses e criou cardeais de lugares como Teerão, Argel, Tóquio e Abidjan, ampliando a universalidade do governo da Igreja visao.pt. Além disso, pela primeira vez na história, uma mulher passou a chefiar um dicastério vaticano: em janeiro de 2025, a irmã Simona Brambilla foi nomeada prefeita do Dicastério para a Vida Consagrada, cargo até então reservado a clérigos de alta hierarquia visao.pt. O porcentual de mulheres em cargos na Santa Sé também aumentou significativamente na última década, refletindo a visão de uma Igreja mais inclusiva e diversa.
A abertura de Francisco estendeu-se também àqueles que se sentiam excluídos da Igreja por sua situação de vida. Ele procurou derrubar muros pastorais e enfatizou que “na Igreja, há lugar para todos”, ecoando sua mensagem da JMJ Lisboa 2023: “Todos, todos, todos!” visao.pt. Durante seu pontificado, promoveu uma reflexão mais profunda sobre a situação dos divorciados recasados (com a exortação Amoris Laetitia em 2016) e manifestou acolhimento às pessoas LGBT+, pedindo que ninguém fosse descartado por causa de sua orientação. Em várias entrevistas e homilias, insistiu na necessidade de acompanhar essas pessoas com respeito e carinho. Declarações em favor dos direitos LGBTQ+ – algo inédito em tal nível na Igreja – ilustraram a vontade do Papa de adaptar a instituição às realidades sociais contemporâneas, sem perder de vista o Evangelho dm.com.br. Essa postura de “Igreja em saída”, pobre, inclusiva e misericordiosa, aproximou muitos fiéis (e mesmo não fiéis) que ansiavam por uma religião mais compassiva. Como definiu um comentarista, Francisco trouxe “nada de novo, mas tudo novo” – renovando gestos e esperanças a partir do cerne do Evangelho, do Concílio Vaticano II e do exemplo de Cristo visao.pt.
Um legado de esperança para a humanidade
Na manhã desta segunda-feira, 21 de abril de 2025, o mundo se despediu de Papa Francisco, falecido no Vaticano aos 88 anos, marcando o fim de uma era histórica dm.com.br. Em sua última aparição pública – a bênção de Páscoa, ontem –, o pontífice argentino reafirmou a mensagem central que guiou todo o seu ministério: a esperança perseverante em meio às provações dm.com.br. De fato, desde o Habemus Papam até seus derradeiros pronunciamentos, Francisco construiu um patrimônio espiritual, ético e político que transcende fronteiras de religião ou nação dm.com.br. Seu fervor por um mundo mais fraterno, pacífico e justo inspirou milhões muito além da Igreja, com uma liderança servidora pautada pela humildade e pelo amor aos mais frágeis.
O legado de Francisco – expresso em encíclicas transformadoras, gestos de coragem e palavras de conforto – permanecerá como um farol para a humanidade em busca de rumo. Temas que ele elevou ao debate global, como a crise climática, a imigração, a desigualdade social e o diálogo entre culturas, continuam sendo desafios centrais deste século. Mas seu testemunho oferece um caminho: o do encontro em vez do confronto, o do cuidado em vez da exploração, o do abraço ao diferente em vez da construção de muros. “Crentes e não crentes sentem necessidade de vozes lúcidas, capazes de abrir caminhos de esperança”, afirmou certa vez um teólogo comentando a influência de Francisco visao.pt. Essa voz agora silencia, mas seus ecos ressoarão por muito tempo. Francisco será lembrado como o Papa que não teve medo de desafiar normas e lutar por um mundo mais justo e igualitário, deixando uma marca duradoura na história dm.com.br – uma marca que convida cada pessoa de boa vontade a manter viva a chama da esperança, da paz, do diálogo e do cuidado com toda a criação.
Fontes: Matéria elaborada a partir de documentos oficiais do Vaticano e análises jornalísticas sobre o pontificado de Papa Francisco vatican.vavatican.vadm.com.brvisao.pt, incluindo sua mensagem Urbi et Orbi de Páscoa de 2025 vatican.va e referências a encíclicas como Laudato Si’ e Fratelli Tutti.
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